quinta-feira, 25 de abril de 2024

 

Direito à Consulta e Consentimento de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Direito à Consulta e Consentimento de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais. Biviany Rojas Garzón, Erika M. Yamada, Rodrigo Oliveira. – São Paulo: Rede de Cooperação Amazônica – RCA, 2016.

Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento. Guia de Orientações. Erika M. Yamada, Luís Donisete Benzi Grupioni, Biviany Rojas Garzón. – São Paulo: RCA – Rede de Cooperação Amazônica, 2019.

As publicações que apresento neste Lido para Você, foram trazidas para exposição e compartilhamento por ocasião de painel, realizado e transmitido pelas redes sociais do Centro Cultural de Brasília (Jesuítas), com o apoio das mesmas entidades que promovem mensalmente os chamados Diálogos de Justiça e Paz: o OLMA – Observatório Nacional de Justiça Sociambiental Luciano Mendes de Almeira, a CJP/DF – Comissão Justiça e Paz de Brasília e a CBJP – Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

Sobre o painel, uma iniciativa do COPAJU Brasil (O Comitê Pan-Americano de Juízes e Juízas para os Direitos Sociais e a Doutrina Franciscana – COPAJU foi constituído em 4 de junho de 2019 na Cidade do Vaticano, sob a inspiração das palavras de Sua Santidade o Papa Francisco) e a Rede de Cooperação Amazônica, com a participação de mulheres indígenas, entre elas as que participaram do painel

Para a integral apreensão do roteiro do painel, as participações que lhe deram conteúdo, e seus objetivos, pode-se conferir https://www.youtube.com/watch?v=xE0V_TcvMNA, Percursos & Perspectivas – Encontro com Mulheres Indígenas da Rede de Cooperação Amazônica: Convenção 169 da OIT.

De relevo o fato de que o eixo da atividade foi a apresentação dos conceitos, enunciados e, sobretudo, com a locução das mulheres indígenas, a apresentação de um conjunto de registros de protocolos autônomos de consulta e de consentimento, e de experiências que permitiram realizar o modo como foram livremente estabelecidos por povos e comunidades, notadamente na região amazônica. E a mobilizada e comprometida moderação a cargo da Juíza Ananda Tostes Isoni, do TRT 10ª Região, Coordenadora-Geral do COPAJU Brasil.

Nos dois textos postos em relevo, em formato de informação e de guia de procedimento, o instituto da consulta é descrito e situado no contexto de sua formulação, a partir da Convenção 169, da OIT – Organização Internacional do Trabalho (ONU), ratificada pelo Brasil.

No primeiro – Direito à Consulta e Consentimento de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais – de modo claro, bem informado (como orienta o próprio instituto da consulta – os organizadores identificam o marco normativo e jurisprudencial que explica o mecanismo, os desafios para a implementação do direito à consulta e consentimento, oferecem uma reflexão crítica acerca dos percalços de implementação e abrem um capítulo de recomendações em prol da efetivação do direito à consulta prévia no Brasil.

No segundo – Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento. Guia de Orientações – como o título indica, o objetivo é oferecer uma espécie de manual de uso: em seguida a uma Introdução que esclarece a natureza e os conceitos fundamentais que designam o instituto (consulta), os organizadores o contextualizam desde a perspectiva do dever do Estado de consultar e de buscar o consentimento livre, prévio e informado; indicam o sujeito legítimo a quem se destina e que deve ser o protagonista do processo – o direito de decidir como ser consultado; estabelecem os fundamentos que dão autenticidade ao sistema – para que servem os protocolos de consulta? e a oportunidade para a sua realização – o momento adequado da consulta. Na sequência, o guia de procedimentos: modo de se fazer uma consulta adequada dicas práticas para a elaboração de Protocolos de Consulta (Dicas para trabalhar informações sobre o contexto local; dicas sobre o Direito à Consulta Prévia e Consentimento; dicas sobre organização social e representação política). Ao final arrolam materiais de referência (Direito à consulta prévia e protocolos de consulta).

Chamo a atenção para outro evento que precedeu o debate inscrito em Percursos & Perspectivas, realizado duas semanas antes no mesmo espaço sob enfoque próximo: https://www.youtube.com/watch?v=9LqU6B1Yn-Q. Nessa edição do Diálogos de Justiça e Paz com o tema Luta Indígena e o Marco Ancestral“. Para fomentar essa conversa, o DJP recebe Kretã Kaingang, liderança da Arpin Sul e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Angela Inácio Kaingang, cacica da Retomada Faxinal do Rio Grande do Sul, e Luis Ventura, Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Luiz Felipe, do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (Olma) e da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), é o responsável por mediar esse diálogo.

Entre os expositores uma cacica (Angela Inácio Kaingang), liderança da Retomada Faxinal, no Rio Grande do Sul. Destaco a designação. Entre temas fortes que o evento trouxe, a partir do título, ao opor a noção de marco ancestral, à exdrúxula e astuciosa expressão colonizadora forjada pelo agronegócio e pelo latifúndo, marco temporal, os indígenas e aliados logo identicaram os grandes eixos que marcam sua luta autônoma, de sujeitos coletivos, para formar a agenda da afirmação de seus direitos originários: retomada, desintrusão, autodemarcação e elaboraão de protocolos autônomos de consulta e consentimento.

Aliás, essa agenda já vem sendo constituída pela ação política dos povos e comunidades. Basta olhar com atenção as pautas de diferentes modos de trazer a debate as questões que mobilizam os povos e comunidades. Eu próprio me dei conta disso, em meu ofício acadêmico e social.

Assim, quando examinei a dissertação de MATHEUS DE ANDRADE BUENO. Ouça um bom conselho: povos-floresta, o caso da UHE Belo Monte (Monstro) e práticas reconstituintes de direitos na Amazônia brasileira. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) – https://estadodedireito.com.br/ouca-um-bom-conselho-povos-floresta-o-caso-da-uhe-belo-monte-monstro/.

Nesse estudo vê-se que se agregam à intensa e constante resistência dos povos tradicionais, verificada não apenas no enfrentamento do projeto da UHE Belo Monte, mas ilustrada a partir dele. Com efeito, as práticas reivindicatórias no ambiente da Amazônia brasileira, sobretudo a partir de mobilizações dos povos tradicionais, consistem efetivamente em práticas, não se exaurindo em atos episódicos.

Também, em https://estadodedireito.com.br/o-mercado-de-carbono-e-o-direito-dos-povos-xinguanos/,  dissertação de mestrado de Ewésh Yawalapiti Waurá. O mercado de carbono e o direito dos povos xinguanos. Dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de Direito – Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UnB, 2023. Por coincidência, Ewésh é sobrinho de Watatakalu Yawalapiti que se apresentou com muita força no debate sobre a Convenção 169.

No seu  trabalho Ewésh se posiciona estabelecendo como objetivos do seu estudos “entender e compreender: 1) o que é mercado de carbono, quais as bases jurídicas e normas de sua regulamentação; 2 ) como se dá na prática com contratos de carbono envolvendo povos indígenas, quais os riscos, os requisitos e os tipos de contratos de crédito de carbono; 3) como os povos indígenas vem se organizando para defesa dos direitos na temática de mercado de carbono, quais são os sistemas da Governança Geral do Território Indígena do Xingu e sua compreensão sobre o tema”.

Mas uma boa síntese pode ser encontrada em livro recentemente publicado, com apoio do ISA – Instituto Socioambiental, no qual tem papel organizativo alguns dos que também cumprem essa função nos dois textos em destaque neste Lido para Você.

O livro a que me refiro é Tribunais brasileiros e o direito à consulta prévia, livre e informada. SILVA, Liana Amin Lima da et al (Coord.). São Paulo: Editora Instituto Socioambiental/CEPEDIS, 2023, 322 p. (para download: https://acervo.socioambiental.org/acervo/publicacoes-isa/tribunais-brasileiros-e-o-direito-consulta-previa-livre-e-informada).

Conforme indiquei -https://estadodedireito.com.br/tribunais-brasileiros-e-o-direito-a-consulta-previa-livre-e-informada/ – vale mergulhar no oitavo capítulo, a cargo de Juliana de Paula Batista, Luiz Eloy Terena, Luiz Henrique Reggi Pecora e Vercilene Francisco Dias. No capítulo eles discutem a relação do Supremo Tribunal Federal com a consulta prévia, livre e informada. Daniel Lopes Cerqueira e Biviany Rojas Garzón, no nono capítulo, apresentam uma coletânea e sistematização analítica de decisões da Corte IDH sobre o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado de povos indígenas e tribais. Por fim, no capítulo conclusivo, Rodrigo Magalhães de Oliveira, Liana Amin Lima da Silva e Joaquim Shiraishi Neto tecem, juntos, a análise sistemática e um balanço crítico da jurisprudência brasileira.

A obra tem caráter único, enquanto repositório crítico de jurisprudência de tribunais. Atualmente há todo um esforço acadêmico, organizacional e funcional no sentido de dar evidência ao alcance da Convenção 169, da OIT, que trata da Consulta. Anoto, por exemplo, Convenção n. 169 da OIT e os Estados Nacionais/Organizadora: Deborah Duprat. – Brasília: ESMPU, 2015, resultado de seminário realizado em 2014, pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, e que dá origem à presente obra, teve por eixo os contextos nacionais na aplicação da Convenção n. 169. Seu propósito foi fazer avançar, no nosso âmbito interno, a concretização desse documento, colhendo da experiência de outros países os avanços obtidos e, com eles, exercitar uma reflexão que possibilite superar as dificuldades que nos são comuns.

Penso que todos esses esforços, incluindo o livro ora Lido para Você, vêm reforçar estratégias que contribuem para designar – eu o disse em outro texto (https://estadodedireito.com.br/povos-indigenas-no-brasil-2017-2022/), o alcance insurgente das lutas dos povos indígenas, para as quais chamo a atenção, para que sejam lidas em matérias, artigos, entrevistas e palavras indígenas que dão atualidade à obra, entre outras manifestações que logo procurei examinar: É a Hora de Ouvir: Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento, de Biviany Rojas Garzón e Luíz Donisete Benzi Grupioni; Retomar e Fortalecer a Funai, de Fernando Vianna (Fedola), Luana Almeida e Mitia Antunha; Protocolo de Consulta e Fortalecimento do Movimento Indígena no Rio Negro, de Renata Carolina Corrêa Vieira e Renato Martelli Soares; Comunidades Indígenas Engajam-se na Autodemarcação,  de José Cândido Ferreira, Patrícia Carvalho Rosa e João Bento Ramos; “Autodemarcação é Ato Político. É a Nossa Forma de Dizer que essa Terra é Nossa”, Entrevista concedida à equipe de edição; Desintrusão da TI Pankararu (PE) e Covid-19 no Real Parque (SP), de Arianne Rayis Lovo; A Autodemarcação do Povo Nawa, de Fábio Pontes e Alexandre Noronha; Povo Pataxó Retoma Territórios Tradicionais, de Tiago Miotto; Território Insurgente – o Uso da Terra nas Retomadas Terena, de Carolina Perini de Almeida e Gilberto Azanha; O Conselho do Povo Terena como Instância de Consolidação das Retomadas, box; Os Avá Guarani e as Retomadas pela Terra e pela Vida, de Rafael Nakamura e Júlia Navarra.

Incluo ainda, como leitura necessária, o artigo de Eloy Terena e Roberta Amanajás – “O Direito Constitucional à Retomada de Terras Indígenas Originárias”. Este texto está lançado em obra coordenada pela FIAN Brasil e pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos / Organização Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior. 1ª edição. Brasília: FIAN Brasília; O Direito Achado na Rua, 2020). Para os autores, “as retomadas dos territórios tradicionais podem ser entendidas como atos de resistência em defesa dos direitos humanos” e por essa via, inseridos constitucionalmente e convencionalmente ao direito dos povos indígenas ao “Território tradicional, do Direito à Identidade Cultural e da inadequação ou omissão de políticas públicas articuladas e específicas”.

Encontro nesses textos, a força daquela disposição que procurei levar para com ela aferir o alcance insurgente e constituinte que encontrei na dissertação de Luís de Camões Lima Boaventura. Autodemarcação Territorial Indígena: uma análise da via acionada pelos Munduruku face o abandono das demarcações. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília – UnB, 2023, quando a examinei (https://estadodedireito.com.br/luis-de-camoes-lima-boaventura-autodemarcacao-territorial-indigena-uma-analise-da-via-acionada-pelos-munduruku-face-o-abandono-das-demarcacoes/.

Com enunciados desenvolvidos por intelectuais indígenas e assessores, as abordagens se relacionam a toda a tradição de estudos de assessoramento aos povos originários desenvolvidos no Peru, pelo Instituto Internacional Derecho y Sociedad, dirigido por Raquel Yrigoyen Fajardo. Destaco o que a respeito escrevo aqui neste espaço Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/memoria-del-i-curso-internacional-interdisciplinario-e-intercultural-proteccion-internacional-de-los-derechos-humanos-de-pueblos-indigenas/), a propósito da Memoria del “I Curso Internacional, Interdisciplinario e Intercultural: Protección Internacional de los derechos humanos de pueblos indígenas. Derechos Territoriales y Consulta Previa”, desarrollado en Lima, del 7 al 12 de octubre de 2019. © Raquel Yrigoyen Fajardo, IIDS (coord.) Esta Memoria ha sido elaborada con la asistencia de Briggitte Jara (IIDS), y el apoyo de Renata Carolina Corrêa Vieira (UnB), en coordinación con Raquel Yrigoyen Fajardo, Coordinadora General del Curso. Las fotografías que aparecen en esta Memoria son parte del archivo fotográfico del Instituto Internacional de Derecho y Sociedad-IIDS. Participei intensamente dessa rica experiência.

A referência ao trabalho que Raquel Yrigoyen vem imprimindo ao IIDS, valeu, exatamente nesse momento, seu credenciamento para se fazer representar em Audiencia Pública do Pedido de Opinião Consultiva sobre “Emergência Climática e Direitos Humanos” apresentada pela República da Colômbia e pela República do Chile (SECRETARÍA DE LA CORTE, San José, 12 de abril de 2024 REF.: CDH-SOC-1-2023/1529, Opinión Consultiva SOC-1-2023), que será realizada presencialmente em Brasília, Brasil, no dia 24 de maio de 2024, e em Manaus, Brasil, nos dias 27, 28 e 29 de maio de 2024.

Explica Raquel que “el planteamiento que hemos enviado desde el  IIDS, para ser considerado por la Corte IDH en su Opinión Consultiva, señala que las actividades extractivas en territorios indígenas, como el secamiento de lagunas para la minería a cielo abierto (como está autorizado en el caso Conga o Río Blanco), o la tala de bosques para la extracción de petróleo (como está autorizado en el caso Achuar) o actividades agroindustriales o mineras, es una causa central del calentamiento global y la emergencia climática mundial. Ello se debe a concesiones inconsultas otorgadas por el Estado a favor de corporaciones extractivistas, en violación de derechos de los pueblos indígenas a su integridad territorial, autodeterminación, participación, consulta y consentimiento previo, libre e informado. Y, además, generan criminalización y violencia institucional por décadas, cuando los pueblos defienden sus territorios para evitar tales actividades de destrucción de su territorio y secamiento de fuentes de agua. Ante ello, planteamos la declaratoria de la nulidad de las concesiones extractivas otorgadas sin consulta ni consentimiento previo, libre e informado, como una medida necesaria que, simultáneamente, garantizaría los derechos de los pueblos indígenas y protegería el planeta del calentamiento global y la emergencia climática que padecemos. Esa es nuestra posición como IIDS”. Não são diferentes esses temas dos que também nos afligem.

Daí a importância de uma forte mobilização que vem caracterizando a luta dos povos e comunidades indígenas a partir dos temas fortes dessa agenda. Relevo para para a elaboração autônoma de protocolos de consulta e de consentimento e para enfrentamento às teses jurídicas que são continuamente erigidas para afrontar os direitos indígenas (AS TESES JURÍDICAS EM DISPUTA NO STF SOBRE TERRAS INDÍGENAS. Conselho Indígena Tapajós Arapiuns – CITA e Terra de Direitos. Apoio: Misereor. Autores: Auricelia dos Anjos, Elida Lauris, Pedro Sérgio Vieira Martins e Raimundo Abimael dos Santos. Contribuição: Franciele Petry Schramm, José Lucas Odeveza e Lizely Borges Foto da capa: Gabriele Siqueira. Diagramação: Sintática Comunicação. Agosto de 2021 (https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Justica-e-o-marco-Temporal-de-1988-(final).pdf); https://bit.ly/tesesmarcotemporal. Cf. https://estadodedireito.com.br/as-teses-juridicas-em-disputa-no-stf-sobre-terras-indigenas/).

Nas ilustrações são apresentados alguns modelos desses protocolos autônomos que foram apresentados aos participantes do evento realizado no Centro Cultural de Brasília. O seu teor pode ser conferido nas edições virtuais dos documentos. São muitos, mas não são todos. Em Procolos Autônomos de Consulta e Consentimento. Um olhar sobre o Brasil/Belize/Canadá/Colômbia, há uma lista de protocolos autônomos de consulta, formada pelos que foram analisados para a obra. Belize, 1; Brasil,23; Canadá, 7; Colômbia, 5.

No evento, o Ministro Lélio Bentes, presidente do Tribunal Superior do Trabalho, recapitulo os elementos constitutivos do instituto da consulta. Até mais porque, com a memória de 14 anos de exercício das funções de perito da OIT, em Genebra, om o tema da consulta no seu escopo de expertise, pode conferir os atributos do instituto, livre, prévia e informada, de boa-fé, conducente a acordo, por meio de diálogo transparente e consentimento. O ministro discorreu sobre todos esses aspectos mas insistiu numa categoria validadora do processo, o processo participativo. No Guia esse requisito está assim enunciado: “as regras do processo de consulta deverão ser decididas conjuntamente entre os povos e comunidades tradicionais afetados e o Estado”. A participação e a representatividade indígena são dois pressupostos da consulta legítima e eficaz. Todos os protocolos examinados dão ênfase a esses pressupostos e é uma riqueza constatar o alcance desse processo radicalmente participativo, na forma, no tempo, no compartilhamento, e no alcance das deliberações.

É notável o esforço de aprendizado a que leva, não só entre os povos e comunidades, mas a partir deles dos demais agentes convocados para o processo. Em face da participação do TST, por seu Presidente e por juízes (no caso juízas) movidos (as) pelo apelo do social que deve animar a realização funcional da Justiça. Na reunião, recebi de Maíra Pankararu (atualmente assessoria da Presidência do TST), uma mostra dessa disposição de aprendizado recíproca. Maíra me passou a notícia do programa Letramento em Diversidade – (re) pensando o Direito do Trabalho a Partir dos Territórios, promovido pelo CENTRO DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE ASSESSORES E SERVIDORES DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO – CEFAST. E a realização da Aula 2   O que o Direito do trabalho tem a aprender com os povos indígenas?. Nesse abril indígena, dia 25 das 14h às 17h, Auditório Ministro Arnaldo Lopes Süssekind – Térreo do Bloco B – Tribunal Superior do Trabalho. Abertura Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, Diretor do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Assessores e Servidores do TST. Mediador: Jônatas dos Santos Andrade, Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça. Docentes: Janina Karipuna, Professora da Universidade Federal do Amapá e  indígena do povo Karipuna; Cris Julião Pankararu, Líder indígena do povo Pankararu; Paulo Celso de Oliveira, Advogado e indígena do povo Pankararu.

Não é por acaso que Maíra tenha sido a protagonista de um grande pioneirismo em matéria de reconhecimento de direitos dos povos indígenas. Ela foi relatora na Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, com um voto aprovado unanimemente de anistia coletiva determinando a reparação de violações não a um indivíduo, mas a todo um povo (https://brasilpopular.com/anistia-coletiva-efetivacao-da-justica-de-transicao-para-os-povos-indigenas-no-brasil/). O voto de Maíra e o julgamento, no contexto de 60 anos passados desde o Golpe de 1964 e as violências que o caracterizaram, representa bem possibilidades efetivas para um agir, não só na Comissão de Anistia, mas no sistema de governo, para a criação de políticas com o recém criado Ministério dos Povos Indígenas ou para a atuação emponderada do Movimento Indígena para avançar nesse campo. O voto é também um voto de confiança. Eu também sou confiante, na medida de conquistas que vençam o pessimismo da razão com o entusiasmo da vontade, em razões bem fundadas cujas referências próximas se encontram na dissertação de mestrado da própria Maíra (https://estadodedireito.com.br/nossa-historia-nao-comeca-em-1988-o-direito-dos-povos-indigenas-a-luz-da-justica-de-transicao/).

Mas confesso que me preocupam mais os aliados que os adversários. O juiz Cançado Trindade, por duas vezes Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, exemplar em seus votos de valorização das exigências de reparação para restaurar a dignidade de projetos de vida e projetos sociais, lembrava que o principal obstáculo para integrar os direitos humanos nos sistemas nacionais de direito é o obstáculo do positivismo – o científico e o jurídico – que reduzem o humano na hierarquia da evolução (será o indígena gente como nós?) e o direito ao legal que desconsidera a dimensão antropológica de outras sociabilidades em dinâmica de pluralismo jurídico (aliás, já acolhidas no voto do relator Ministro Fachin no exame da ADPF que discutiu e rejeitou a tese esdrúxula do chamado marco temporal.

Nesse caso, sustentei essa constatação, em texto no qual afirmo que a Constituição é mais que o texto disputas por posições constitucionais (in A constituição da democracia em seus 35 anos / (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023), conforme https://estadodedireito.com.br/a-constituicao-da-democracia-em-seus-35-anos/. Até para aludir a interpretações construtivas, que expandem o alcance da promessa constitucional em sua disposição de realizar direitos e ter cumpridas as suas promessas. Certamente para a compreensão dessa possibilidade é indispensável abrir-se a exigências próprias à disputa narrativa de realização da Constituição e de categorias que dêem conta de aferir as aberturas que a política proporcione para projetar as disposições constitucionais para o futuro.

É assim, portanto, que se pode compreender a decisão do Ministro Fachin um dos coordenadores esta obra, para repensar a dimensão política da função judicial  e reconhecer que “são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma ‘participação política da comunidade [indígena]’ expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural”, conforme seu voto no TSE (segundo semestre de 2022), por ocasião do julgamento do Recurso Especial Eleitoral (Processo Número: 0600136-96.2020.6.17.0055 – Pesqueira – Pernambuco

Com a sua repristinação pelo Senado Federal da teratológica tese do marco temporal (embora na iminência de novo rechaço pelo STF), ainda permanece a preocupação: será o direito positivo, legal, capaz de abrir-se a esse reconhecimento?

Claro que essa possibilidade só se dá valendo-se de consideração sobre “a dimensão política da função judicial, apontada por Antônio Escrivão Filho e José Geraldo Souza Junior (Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016)” para, não só afastar  “o mito de neutralidade e buscando processos de democratização da justiça a partir, inclusive, da sua reorientação aproximada da realidade brasileira”, mas para afirmar, nesse passo, que são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma “participação política da comunidade [indígena]” expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural.

Como está em Maíra Pankararu, que esteve presente no evento do CCB e que em co-autoria tem participado no plano teórico dessa forma de interpelação ao jurídico para que ele se abra ao social e ao político (O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias: Coleção Direito Vivo, volume 5. José Geraldo de Sousa Junior et al (org). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021. Em especial: Larissa Carvalho Furtado, Luana Bispo de Assis, Maíra de Oliveira Carneiro Pankararu, Natália Albuquerque Dino, Solange Ferreira Alves  integrantes do primeiro eixo de autoria,  elaboraram o “Manifesto por um Direito Achado nas Aldeias” onde problematizaram sobre a “necessidade de  privilegiar a autonomia dos povos originários, de suas lutas, linguagens, práticas e produções, também no campo da construção do que se entende por “conhecimento”, “ciência” e “Direito” no pensamento jurídico brasileiro” (FURTADO, Larissa; ASSIS, Luana; PANKARARU, Maíra; DINO, Natália; ALVES, Sol) e  assim apresentam uma convocação  à um modelo epistemológico do Direito Achado na Aldeia inserido como um conjunto de instrumento teórico capaz de romper as práticas coloniais ainda hoje vigentes no ensino e na prática jurídica tradicional. (FURTADO, Larissa; ASSIS, Luana; PANKARARU, Maíra; DINO, Natália; ALVES, Sol). Cf. https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-questoes-emergentes-revisitacoes-e-travessias/.

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

quarta-feira, 24 de abril de 2024

 

Brasília e os discursos de apropriação: da urbs à polis

Embora o contexto trazido pela citação pareça contemporâneo às nossas cidades, ele faz parte de trecho da Carta de Atenas, escrita pelo urbanista Le Corbusier em 1931, durante o Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos que ocorreu na Grécia



CORREIO BRAZILIENSE, OPINIÃO, 24/04/2024, p. 11

   

JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR*

BENNY SCHVARSBERG**

SABRINA DURIGON MARQUES e LUDMILA CORREIA***

 

 

 

"Ficando a cidade saturada, sem poder acolher novos habitantes, fez-se surgir apressadamente cidades suburbanas, vastos e compactos blocos de caixotes para alugar ou loteamentos intermináveis. A mão de obra intercambiável, que absolutamente não está ligada por um vínculo estável à indústria, suporta de manhã, à tarde e à noite, no verão e no inverno, a perpétua movimentação e a deprimente confusão dos transportes coletivos. Horas inteiras se dissolvem nesses deslocamentos desordenados." (Carta de Atenas)

Embora o contexto trazido pela citação pareça contemporâneo às nossas cidades, ele faz parte de trecho da Carta de Atenas, escrita pelo urbanista Le Corbusier em 1931, durante o Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos que ocorreu na Grécia.

Brasília, erguida no período que imediatamente antecede à ditadura militar e dentro do propósito modernista, teve como um de seus principais inspiradores Le Corbusier, membro de um grupo de urbanistas modernos que acreditavam serem capazes de mudar a vida das pessoas a partir da arquitetura e do urbanismo. Tivemos, no início da década de 1960, uma conjuntura que minava fortemente a participação popular nas discussões sobre os rumos que a cidade tomaria a partir de sua ocupação e consolidação. Ao mesmo tempo em que o momento político reprimia a vontade popular e a ocupação das ruas, o ideário arquitetônico e urbanístico moderno se julgava com potencial de resolver, de cima para baixo, os problemas da cidade.

Mas a tomada da rua pelo povo não desapareceu, ficou desvanecida até a redemocratização do país e, recentemente, passou por novo processo de esvaziamento por quase uma década, quando vivemos um momento de forte repressão política nas ruas. Vivemos agora novas oportunidades de resgatar as esferas democráticas representadas pela rua — enquanto espaço público da ação —, por meio dos processos de caráter participativo em andamento, mesmo que limitadamente, no Distrito Federal.

O Plano Diretor de Ordenamento Territorial passa por processo de revisão, tendo sido realizadas oficinas nas diferentes regiões administrativas. A estrutura de governança para sua revisão conta com um Comitê de Gestão Participativa, que vem gerindo, junto à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação do DF, os debates que culminarão com uma proposta legislativa a ser enviada à CLDF. Antes disso, no entanto, serão promovidas as audiências públicas, para as quais é indispensável, amparada no marco legal do Estatuto da Cidade, a participação da população distrital.

Outro projeto em debate público atualmente na CLDF é o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB), que regula a área tombada como patrimônio pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e traz a possibilidade de pensar a requalificação de diversas áreas pouco ocupadas ou esquecidas pela mudança dinâmica da cidade.

Também este ano, o governo federal convocou a Conferência Nacional das Cidades para novembro, com o mote Cidades Inclusivas, Participativas e Socialmente Justas, com subtemas: cidades dignas, solidárias, sustentáveis e dinâmicas. Transformar Brasília, uma das cidades mais desiguais do mundo, em uma cidade justa e solidária, é um dos desafios que está colocado para nós, seus habitantes.

A Conferência Distrital é etapa do ciclo local precedente à nacional, e está prevista para setembro deste ano, com o tema Função Social da Cidade e da Propriedade Urbana, oportunidade em que poderemos reivindicar a escala humana de Brasília, repensando a cidade enquanto bem comum, que deve ser igualmente usufruída por todas as pessoas, independentemente do local de moradia. As cidades têm caráter dinâmico, mudam constantemente. A Brasília de 1960 não existe mais. É preciso adequar a legislação às demandas populares a fim de que tenhamos uma cidade democrática e em conformidade com os objetivos da Nova Agenda Urbana, proporcionando um espaço público que acolha toda a população.

Passados 64 anos de criação da nossa capital, já acumulamos experiência suficiente para adequar o espaço concebido ao espaço vivido, e por isso "vamos precisar de todo mundo" para construir a Brasília que queremos para as presentes e futuras gerações. A transformação de nossa capital em uma pólis só será possível com a efetiva tomada do protagonismo pela população.

Cada um de nós — técnicos do governo, comunidade acadêmica, entidades de classe, os movimentos sociais, os coletivos e todas organizações da sociedade civil — dentro de nossas competências, tem um papel fundamental a desempenhar. Enquanto os técnicos do governo trazem sua experiência em políticas, planejamento e gestão públicos; a comunidade acadêmica desenvolve pesquisas, análises e propostas embasadas em conhecimento científico; as entidades de classe representam os interesses de diversos setores da sociedade; e os movimentos sociais e coletivos trazem a voz das comunidades vulnerabilizadas, defendendo seus direitos e necessidades. Agindo de forma articulada, poderemos avançar no sentido de efetivar a participação social no planejamento das cidades, rompendo com a lógica autoritária de cima para baixo e fortalecendo as dinâmicas democráticas e participativas.

 

*Professor emérito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

**Professor titular da UnB e integrante do Comitê de Gestão Participativa

***Professoras universitárias e integrantes do Comitê de Gestão Participativa, acompanham a revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial

 

quinta-feira, 18 de abril de 2024

 

Quintas Literárias 2023 / Organização Sôniahelena

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Quintas Literárias 2023 / Organização Sôniahelena. Vários Autores. 1ª edição. Brasília, DF: Vitalia, 2024, 368 p.

O cartaz anuncia o lançamento, no dia 21 de março, do sexto volume da série Quintas Literárias. Com apresentação do Presidente da ANE – Associação Nacional de Escritores, escritor Fábio de Sousa Coutinho, o novo volume agrega à série, iniciada em 2018 com a edição dos textos das palestras realizadas em 2017, no Auditório Cyro dos Anjos, compondo um acervo de “publicações virtuosas, eternizando o trabalho intelectual desenvolvido na ANE ao longo desses anos e invariavelmente assegurando relevante diversidade temática e alta qualidade estética”.

As Quintas Literárias são, portanto, um evento marcante no calendário de atividades e de encontros da ANE. O panorama dessa agenda pode ser visitado na página da Associação – https://anenet.com.br/ – um convite a uma estimulante navegação cartografada conforme um sofisticado imaginário cultural e literário.

A edição agora lançada, sexto volume, corresponde às participações do ano de 2023, das Quintas Literárias, num contexto de celebrações importantes, incluindo “centenários ocorridos no ano e, também, um jubiloso bicentenário na literatura brasileira, o do poeta romântico maranhense Gonçalves Dias e uma programação [que]se encerrou no dia 7 de dezembro, com mais uma apresentação de palestra-recital de nosso associado Luiz César Costa, que celebrou a poesia do pantaneiro Manoel de Barros”, diz Fábio Coutinho em sua Apresentação.

O sumário do volume traz o elenco dos palestrantes e as datas de suas exposições: Roberto Rosas, Vladimir Carvalho, Carlos Henrique Cardim, Edmílson Caminha, Margarida Patriota, Anderson Olivieri, Cristovam Buarque, Sôniahelena, Lidivaldo Reaiche Britto, José Roberto de Castro Neves, Maurício Melo Júnior, Lauro Moreira, Vera Lúcia de Oliveira e Luiz César Costa. Há outros registros temáticos que compuseram a agenda das Quintas em 2023.

Por indicação do querido amigo e colega de universidade (UnB) Vladimir Carvalho, fui um dos convidados a formar mesa, com o próprio Vladimir (O Direito de Exibir), numa das Sessões das Quintas Literárias, em 2023, com o tema Cinema e Literatura (dia 26 de outubro, p. 267-310). Aí, os textos elaborados por mim e por Vladimir, para a edição.

O próprio Vladimir, notável cineasta, a meu ver, hoje, no Brasil, o mais importante documentarista ainda em plena atividade, foi o meu paraninfo, mobilizado por recente livro que eu havia publicado – José Geraldo de Sousa Junior. Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura – São Paulo: Editora Dialética, 2023. 168 p., no qual dou relevo à filmografia do querido colega, nos termos que podem ser conferidos aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura/).

Vladimir inclui em seu texto, trazido para a edição do volume 6, uma nota de apreço, compartilhando comigo a mesa, mas abre uma reflexão que lhe é própria, basta ver outros ensaios seus sobre o seu tema de vida: “Assim me senti mais à vontade para, depois de ler o livro de autoria de José Geraldo, Lido para Você, que adota o subtítulo Direito, Cinema e Literatura, animar-me a falar de algo que me é comum, porque trata-se em parte de meu ofício, e portanto razão de atuar no mundo da cultura como simples militante do cinema brasileiro”. E prossegue, nesse diapasão, o seu instigante ensaio.

De minha parte, aproveito o ensejo para compartilhar a minha exposição. Não me parece um excesso. Considero que o repositório, valioso em sua concepção, tem circulação muito restrita porque fica limitado ao acervo da Associação e manuseado a poucas mãos, embora pelas mais esclarecidas cabeças da cidade e do país (já que a ANE é nacional. Por isso acho válido, com o impulso da rede movimentada pelo Jornal Estado de Direito que abriga a Coluna Lido para Você, amplificar para o compartilhamento com interlocutores de diferentes inserções acadêmicas em sentido estrito, e culturais em sentido amplo, o que pude apresentar num sarau literário.

Segue o meu texto.

Compartilho, nesta noite, com o cineasta e professor Vladimir Carvalho e com Carmela Grüne, minha editora no Jornal Estado de Direito, um debate, coordenado pelo presidente da ANE, o escritor Fabio Coutinho, sobre Cinema e Literatura, tema imaginado a partir da obra Lido Pra Você, que organizei, num primeiro volume exatamente sobre o tema “Direito, Literatura e Cinema”.

Do que trata essa obra (São Paulo: Editora Dialética, 2023. 168 p. (https://loja.editoradialetica.com/humanidades/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura), publicada em coedição com o Jornal Estado de Direito, espaço no qual são publicados os textos originais que formam a edição do livro.

Um primeiro lançamento da obra foi realizado em junho, no Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB (evento virtual), dentro do projeto “Saindo do Prelo”, com abertura conduzida pelo Presidente do IAB Sydney Sanches, Marcia Dinis, Diretora da Biblioteca do IAB e as participações especiais de Carmela Grüne, Cristina Zackzeski e Nara Ayres Brito, membros do Instituto, contando também com a participação de autores e de autoras das obras comentadas no livro.

Logo, com Carmela Grüne, iremos organizar um cronograma subsequente de lançamentos e também, pela página do Jornal, o modo de aquisição do livro, cujos direitos autorais servirão ao objetivo de contribuir para a manutenção da plataforma do Jornal Estado de Direito.

O livro é o primeiro volume de uma coleção que reúne, por seleção temática, os temas da Coluna. Neste primeiro volume – outros três estão sendo preparados – o tema é Direito, Cinema e Literatura.

Na minha Introdução – Lido para Você. O Real Apreendido por Muitas Narrativas e Diferentes Linguagens – explico o processo de criação da obra e a seleção dos textos.

Tal como digo nessa Introdução, aqui reproduzida, artigos de opinião e a sua expressão no estilo de interpretação de conjuntura passaram a compor uma característica de minha intervenção intelectual. É um estilo opinativo que experimento desde os anos 1980.

Primeiro, no Jornal da Ordem, da OAB do Distrito Federal, nas sucessivas direções editoriais de Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, Jarbas da Silva Marques e Galba Menegale. Depois na Rádio Cultura FM, do Governo do Distrito Federal, durante a gestão do Governador Cristovam Buarque, no Programa “Música e Informação”, com uma participação semanal, sempre atenta, a partir da leitura matinal dos jornais, feita pelo âncora, e meus comentários articulados pelo eixo interpretativo da democracia, da cidadania, da justiça e dos direitos. Esse eixo, aliás, baliza um plano mais geral que se orienta pela disposição dupla: contribuir para uma contínua democrati- zação da democracia e uma constitucionalização atualizada pela estratégia de atualização permanente de direitos, já que esses não são quantidades, são relações, daí que a professora Marilena Chauí sustente ser a democracia uma forma de sociedade e não apenas uma forma de governo.

Por isso também, que entre os anos 2006 e 2008, na Universidade de Brasília, com a coordenação dos Grupos de Pesquisa “O Direito Achado na Rua” e “Sociedade, Tempo e Direito”, publicamos um tabloide mensal denominado Observatório da Constituição e da Democracia, com colunas e entrevistas mensais para o acompanhamento criativo do experimento de realização da Constituição e da Democracia, já que seus fundamentos não se instalam uma vez para sempre mas são sempre o resultado de disputas e posições interpretativas que prosseguem no movimento legitimado da política.

Uma nota de relevo atribuo à série de artigos publicados mensalmente na Revista do Sindjus-DF, Sindicato dos Servidores do Judiciário e do Ministério Público no Distrito Federal, por quase dez anos, entre 2001 e 2011.

Tudo começou quando o Coordenador-Geral do Sindjus, Roberto Policarpo, propôs para o 3o Congresso da categoria, o tema central: A sociedade pode ser democrática com um Judiciário conservador, realizado nos dias 7, 8 e 9 de dezembro de 2001, e me incumbiu de proferir a conferência inaugural sobre o tema.

Trazendo para os servidores do Judiciário e do Ministério Público, sindicalizados, a responsabilidade de pensar esse tema, o Sindjus mostrava claramente que a promessa constitucional de edificar uma sociedade justa e solidária implicava em dinamizar o protagonismo participativo já presente em várias dimensões da sociedade e do Estado, mas ainda tênue no espaço do Ministério Público e, principalmente, do Poder Judiciário. E nesse passo, trazer para a ação sindical o compromisso de não só conduzir lutas que implicassem acumular conquistas orientadas por demandas corporativas, mas igualmente engajar-se em frentes políticas que abrissem perspectivas de desenvolvimento democrático pleno para toda a sociedade. Logo a seguir, Policarpo me convidou para manter uma coluna permanente na Revista, nascendo aí uma colaboração que durou até 2011, quando deixou de circular, mudando a direção sindical, já alcançada pelo arranhar da política, com o roer das entranhas democráticas, a fera proto-fascista que recentemente saiu de sua hibernação, com o golpe desdemocratizante e desconstituinte desencadeado em 2016.

Meu querido editor e amigo Sergio Antonio Fabris publicou em Idéias para a Cidadania e para a Justiça (Porto Alegre, 2008), uma coletânea dos 50 primeiros artigos da Coluna. O mesmo Sérgio Fabris que me apresentou a Carmela Grüne, a motivada editora do Jornal Estado de Direito, e de outros belos e engajados projetos nas áreas do direito e da cidadania, conforme ela própria relata na apresentação desteº volume, de Lido para Você.

Carmela conta como ela ao recompor o projeto editorial do Jornal Estado de Direito, um projeto com dezoito anos (lançado em 15 de novembro de 2005) de contínua edição, então passando do formato impresso para o digital, me convidou para tornar permanente uma colaboração eventual e como, assim, surgiu a ideia da Coluna.

O Jornal já mantinha uma agenda de colunistas permanente, ocupando cada um e cada uma um dia da semana e acertamos que eu cobriria a quarta-feira. Foi aí que me ocorreu transformar em rotina uma experiência de ofício, a de orientar leituras para meus alunos, especialmente de graduação, estimulando-os tal como eu próprio o fazia com empenho metodológico, a elaborar resenhas dessas leituras. Por outro lado, muitas dessas leituras eram pautadas não só por necessidade de atualização pedagógica de bibliografias, mas pelo ofício de examinar monografias, relatórios, dissertações e teses, além de livros. Portanto, naturalmente, sugestões de leituras para pesquisadores e, por que não, para editores, considerando o ineditismo e a relevância de muitos desses trabalhos.

Assim, a coluna logo se exibiu para a imaginação: Lido para Você. Anoto que a inspiração veio de coluna mantida pelo notável jurista André-Jean Arnaud, diretor de pesquisa do CNRS (França), editor de Droit et Société – Revue Internationale de Theorie du Droit et de Sociologie Juridique. Essa revista, vale dizer, foi fundada em 1926, por Hans Kelsen, León Duguit e Franz Weyer. Claro que Arnaud, com seus colaboradores, investidos de uma perspectiva crítica, imprimiu ao periódico uma outra orientação para os estudos críticos de teoria do direito e de sociologia.

A Droit et Société tinha uma seção “Nouvelles du Monde”, e nela em registro permanente, dois tópicos: “Chronique bibliographique” e “Lu pour vous”. Nesta, comentários indicativos de edições recomendadas pelos editores/convidados/subscritores.

Para minha “glória”, no nº 9, edição de 1988, o próprio Arnaud (sobre Arnaud disse-me Michel Miaille certa vez, “nous parlons d’une institution”) publicou uma nota sobre O Direito Achado na Rua (pp. 328-329): Le droit qu’on trouve dans la rue, comme cours de Faculté de droit, ce n’est pas mal! Décidément, nous avons, em France, bien du chemin à faire….

Assim nasceu a coluna Lido para Você, com mais de duzentos textos já publicados. Eles abrangem um amplo arco de referências, modos paradigmáticos de apreensão do real, pelas aproximações filosóficas, teológicas, científicas, literárias, jurídicas, todos discursos interpretativos expressos em diferentes linguagens, mas sempre pelos eixos que orientam minha leitura de mundo: a democracia, a cidadania, a justiça e o direito.

Neste primeiro volume, com a apresentação de Carmela Grüne, e não poderia ser outra a apresentadora dado o seu acolhimento editorial à Coluna, são publicados títulos que se caracterizam por articular os temas de fundo, formadores do eixo, pela mediação cultural e literária.

São leituras que desvendam no discurso artístico o intuir que não precisa fundamentar, explicar ou revelar o real, o expõe em compreensão direta e sem mediações. Conforme lembra o grande acadêmico de Coimbra Eduardo Lourenço (Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999), a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de uma outra linguagem.

Nesse volume I, colecionados a partir da temática que distingue a obra, são destacados os seguintes textos, além da minha Introdução e do Prefácio de Carmela Grüne, os artigos conforme o Sumário: Coluna Lido para Você: Direito no Cinema Brasileiro; Cartas de Viagem: Histórias de caminhos não contados; Olhos de Madeira. Nove Reflexões sobre a Distância, de Carlo Ginzburg; Meninos do Rio Vermelho e Uma Senhora Pelada; Criminologia e Cinema: Semânticas do Castigo; Comunicação e música; Memória e Perspectivas 50 Anos de Letras da Universidade de Brasília (1962-2012); Pesadelo. Narrativas dos anos de chumbo; Retratofalado; A Rua de Todo Mundo; Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica; Agenda 2021; Traços – Especial 5 Anos; Por Que Ler os Clássicos; Justiça Indeferida; Literaturas Munduruku; As Histórias Contadas e a Justiça Cognitiva; Deu Nisso! Cláudio Almeida.

Júlia Noffs foi a Produtora Editorial, cujo zelo garantiu que o livro pudesse alcançar a qualidade de edição com que se apresenta. Chamo a atenção para a capa, criação de Larissa Brito. Agradeço a Larissa ter acolhido para o esboço do desenho do trabalhador que representa o Direito na iconografia do tema, a sugestão de tomar como inspiração a arte de nossa colega pesquisadora do coletivo O Direito Achado na Rua e artista reconhe- cida Judith Cavalcanti. Por isso, nos créditos a nota seguinte:

A imagem do trabalhador com os cestos para representar o Direito se inspira na ilustração criada por Judith Cavalcanti, Têmis, como representação da Justiça para ilustrar a capa do volume 10, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, co-organizado pelo autor deste primeiro volume de Lido para Você.

Anoto um trecho do prefácio elaborado por Carmela Grüne:

Realmente é uma grande honra poder apresentar essa obra que é o resultado da sua generosidade com o Jornal Estado de Direito e seu público leitor, antes impresso, agora na edição eletrônica semanal, às quartas-feiras, onde o professor José Geraldo publica a Coluna “Lido para Você”, a qual apresenta um universo de pessoas através de suas obras sejam elas monografias, teses, pesquisas, livros, nos presenteando com a fonte que fortalece a nossa consciência crítica: o conhecimento. Neste prefácio, também, além de contar um pouco sobre a história do professor José Geraldo com o Jornal Estado de Direito é importante destacar o papel da obra “O Direito Achado na Rua”, mencionar os pesquisadores e autores que trouxeram grandes ideias para a sua elaboração. O livro, organizado por José Geraldo Souza Júnior, quebra paradigmas, ao colocar o Direito de forma prática, não o distanciando do coletivo, mas o aproximando daquele que está na rua. Dá voz e vez à população pelo protagonismo, com vistas a transformação da sociedade e o empoderamento da cidadania. Como referi a Coluna “Lido para Você”, o professor José Geraldo, nesse primeiro volume, apresenta os estudos de pesquisadores e autores, assim, também agradeço publicamente a eles pela dedicação nas áreas que são tão sensíveis e necessárias o olhar social.

Até aqui, uma espécie de recensão que expõe o livro. Para a Quinta Literária, em feição reduzida para se ajustar ao formato e a devida consideração ao auditório. Entretanto, o tema da sessão – Quinta Literária – proporciona abrir a vertente de interesse para o conhecimento do Direito e suas formas de difusão, incluindo o ensino e a educação jurídicas. As relações entre Direito, Arte, Literatura, Teatro e Cinema formam uma Paidéia em alcance clássico e dispõem de um catálogo expressivo para o confirmar. Este texto recupera o pano de fundo da exposição, na sua completude, para registro nos anais do evento.

No plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo, conforme, entre todos, sustenta Boaventura de Sousa Santos. Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho (A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972; Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética, in Palácio, Carlos, S.J., coord. Cristianismo e História, São Paulo: Edições Loyola, 1982), de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para abrir-se a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística.

Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana (Fernando Pessoa), mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento. Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Editora Companhia das Letras), os avatares de Pessoa representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade.

Marx não havia ainda com O Capital analisado a estrutura econômica para, num certo modo de produção explicar a forma- ção da mais-valia, e bem antes o Padre Vieira, artisticamente, a exibiu tal como está no Sermão XIV do Rosário:

Eles mandam e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto do vosso trabalho, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que o de vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: ‘sic vos non vobis melificatis apes’ (assim como vós, mas não para vós, fabricais o mel abelhas).

No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social.

Aplicadas aos operadores do Direito, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade, Notícia do Direito Brasileiro, no 5, Faculdade de Direito da UnB, Brasília): a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel.

O antropólogo Pierre Clastres, em seu livro A Sociedade Contra o Estado – Investigações de Antropologia Política (Porto: Afrontamento, 1984), mostra que a lei encontra espaços inesperados para se inscrever, indicando uma relação entre lei, escrita e corpo como eixo essencial relativamente ao qual se ordena, na sua totalidade, a vida social e comunitária.

É certo que Clastres transporta a sua percepção para a dimensão antropológica em cuja análise se deteve, ou seja, o estudo das sociedades antigas e os ritos de iniciação que nelas fazem do corpo o espaço que a sociedade designa como único espaço propício a transportar o sinal de um tempo, a marca de uma passagem, o cumprimento de um destino, transformando o corpo do indivíduo em veículo de uma operação social de aprendizado, de identidade e de norma cultural.

Para Clastres, o ritual iniciático é uma pedagogia que vai do grupo ao indivíduo, da tribo aos jovens e por meio dele a sociedade dita a sua lei aos seus membros, ela inscreve o texto da lei sobre a superfície dos corpos porque a ninguém é permitido esquecer a lei que funda a vida social da tribo.

Em suas considerações, Clastres evoca a passagem de Kafka em A Colônia Penal, na qual o oficial explica ao viajante o funcionamento da “máquina de escrever a lei”: a nossa sentença não é severa. Gravamos simplesmente com a ajuda do ferro o parágrafo violado sobre a pele do culpado.

Aliás, trazendo essas considerações para o campo da imagem e do cinema, vale pontuar o belo vídeo produzido pelo Centro de Produção Cultural e Educativa – CPCE, da Universidade de Brasília, a UnB: “Pintura Corporal“, interessante trabalho de pesquisa e de direção de Devair Montagner. Em seu roteiro traz grafismos, desenhos, cores, pinturas corporais das culturas Ya- nomami de Demini (AM), Kayapó de Kriketum (PA) e Marubo (AM), revelando significados sociais e simbólicos, que justificam o sobretítulo do vídeo – “Uma Pele Social“.

Penso, pois, tomando como referência a metáfora da “pele social”, ser possível conceber a constituição de discursos sociais de normatividade para além dos lugares usuais e obrigatórios da jurisdição: o Estado, as classes sociais, os grupos de poder, revelando-se em seus significados rebeldes ao “discurso da arrogância” de que fala Barthes, sempre que de um lugar “autorizado” se reivindique o monopólio do dizer o direito.

Tenho em mente, ao assinalar a necessidade deste deslocamento de percepção, a advertência de Carlos Cárcova de que o direito, enquanto dimensão ontológica da normatividade social, deve ser pensado como uma prática social específica que expressa e condensa os níveis de conflito social em uma formação histórica determinada. Mas esta prática, ele completa, é uma prática discursiva no sentido que a língua atribui a esta expressão , isto é, no sentido de um processo social de produção de sentidos, processo conforme indica Enrique Marí, de formação, decomposição e recomposição no qual intervém outros discursos que, diferentes por sua origem e função se entrecruzam.

Não é a Justiça a resultante de um diálogo que liga os Atos dos Apóstolos ao Manifesto Comunista de 1848? Entre nós, no Brasil, quem disso se apercebeu, em síntese político-jurídica evidente, foi o político e jurista João Mangabeira:

……a fórmula da Justiça não deve ser mais a que se resume em ‘dar a cada um o que é seu’. Aplicada em toda a sua inteireza, a velha norma é o símbolo da descaridade, num mundo de espoliadores e de espoliados. Porque se a Justiça consiste em dar a cada um o que é seu, dê-se ao pobre a pobreza, ao miserável a miséria e ao desgraçado a desgraça, que isso é o que é deles. A regra da Justiça deve ser: a cada qual segundo o seu trabalho, enquanto não se atinge o princípio de a cada um segundo a sua necessidade.

De outro modo, não podendo às vezes ultrapassar o disciplinado esforço de fundamentação próprio dos estudos lógicos sobre o enunciado dialético da contradição, pode o discurso artístico suprir o labor filosófico e num delírio declamatório dizer o indizível: “É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”, na música de Gilberto Gil; ou no poema de Alberto Caieiro: O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

Quase 50 anos após a conferência de Sutherland lançando a tese do white collar crime, o debate chega a nossa consideração criminológica sob o impulso de uma delinquência político-institucional. Todavia, a declamação antecipadora dos versos inquietos de Chico Buarque e Francis Hime, cantava os desvarios de nossas elites entreguistas e predadoras: Dormia/ A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações.

Em seu livro Literatura & Direito. Uma outra leitura do mundo das leis (Rio de Janeiro: LetraCapital Editora/IDES – Instituto Direito e Sociedade, 1998), Eliane Botelho Junqueira trata dessa relação, acentuando vários aspectos dos vínculos entre as ciências sociais e a literatura para ampliar as percepções da realidade social. Ela põe em relevo nesse campo a disputa de diferentes análises sobre o direito desenvolvidas na academia, sobretudo norte-americana, a partir do movimento direito e sociedade e direito e desenvolvimento para estabelecer esse novo campo de relações:

As correntes Law and economics, Law and society, critical legal studies, critical race theory e feminist jurisprudence, dentre outras, sem dúvida são conhecidos exemplos dessa efervescente produção acadêmica. Mais recentemente, o ‘movimento’ Law and literature conquistou importante espaço institucional” (pág. 21). A partir daí ela estabelece uma interessante distinção de tendências, a primeira denominada literature in Law, segundo ela, “tendo como origem remota os trabalhos de Benjamin Cardozo, (que) defende a possibilidade dos textos jurídicos – aqui incluindo-se leis, decretos, contratos, testamentos, contestações, sentenças etc – serem lidos e interpretados como textos literários” (pág. 22); e a segunda tendência, “conhecida como Law in literature, voltada para trabalhos de ficção que abordem questões jurídicas” (pág. 23).

Essas tendências continuam fecundantes na cultura jurídica latino-americana, dotada de um imaginário que não se comporta apenas na racionalidade instrumental, mas que aspira a uma razão sensível, afetiva, para assimilar o alcance sugerido por Maffesoli. Ainda mais num ambiente nutrido pelo extraordinário favorável a nos permitir adentrar no realismo. Não sei se procede do Gabo (Gabriel Garcia Marques) a anedota do professor que interpelando seu aluno sobre ele ter lido a Crítica da Razão Pura de Kant, recebeu a resposta imediata, não, mas assisti o filme.

Anoto aqui, o cuidado editorial, por exemplo, do Ministério de Justicia y Derechos Humanos, da Argentina, no sentido de preservar esse imaginário e procurar inculcar na cultura jurídica dos operadores do direito e da justiça portenhos a exigência do enlace entre direito e literatura. Indico a importância da leitura do livro organizado por Alicia E. C. Ruiz, Jorge E. Douglas Price e Carlos María Cárcova, La letra y la ley. Estudios sobre derecho y literatura (Buenos Aires: Infojus, 2014). Na Introdução ao livro, coincidente com as tendências marcadas por Eliane Junqueira, Carlos Cárcova para além de reafirmá-las, ainda acresce: otro tipo de articulación, una articulación ‘interna’…que permite descubrir notables analogias en el proceso de produción discursiva del derecho, por una parte y en el de la literatura en sentido amplio, por otra” (pág. IX).

Volto ao livro de Eliane, para dizer que nele, uma nota de precedência é encontrada, quando ela acentua que a inspiração para a edição que preparou, decorreu dos ciclos sobre Direito e Teatro e Direito e Cinema organizados por Nilo Batista na Seccio- nal Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro, em 1986 (pág. 17).

Portanto, ao interesse que o teatro sempre proporcionou para o conhecimento do direito e para a pedagogia da vida pública e da cidadania e que aparece de forma expressa e razão de fundo nas obras de Hegel (valendo-se da Antígona), de Jhering (utilizando o Mercador de Veneza) e que se transforma em método no trabalho político de Augusto Boal (Teatro do Oprimido, Teatro Forum), hoje registro didático difundido no ensino jurídico, ganhou o cinema esse lugar destacado, que a filosofia soube tão bem utilizar. No ensino jurídico aludo às excelentes estratégias encontráveis um pouco nos melhores cursos.

Na UnB, que melhor conheço, distingo os projetos combinando ensino, extensão e pesquisa desenvolvidos pelos professores e professoras Gloreni Machado (teatro), Bistra Apostolova (teatro), Alexandre Bernardino Costa (cinema) e Cristiano Paixão (cinema). E, notadamente, o trabalho desenvolvido pela professora Alejandra Leonor Pascual: Produção cinematográfica para direitos humanos, para estudantes de Graduação e de Pós-Graduação em Direito e outros cursos da UnB.

Conforme nota que fez a meu pedido, a professora Alejandra salienta que a rica experiência de ensino e implementação do uso de produção cinematográfica em disciplinas de Graduação e de Pós-Graduação começou durante o primeiro semestre de 2011, na Faculdade de Direito da UnB, quando ministrava disciplinas que abordam temáticas de direitos humanos.

Em suas palavras, com essa metodologia os/as alunos/as aprendem a realizar filmes de forma profissional para a realização de seus trabalhos acadêmico-científicos, em cada uma das etapas de produção de um filme; aprendem a trabalhar em equipe já que o produto final dessa metodologia será a realização de um filme, pensado, elaborado, discutido, ambientado, protagonizado, musicalizado e editado pelos próprios estudantes. A ideia de incorporar o ensino e uso de produção cinematográfica no ensino começou em 2010 quando estava realizando um Pós-Doutorado em Filosofia Política na cidade de México. Durante a minha permanência naquela cidade comecei a frequentar cursos sobre produção cinematográfica, que incluíam o domínio de técnicas de pré-edição de filmes (linguagem cinematográfica, elaboração dos personagens, história e argumento cinematográficos, elaboração de roteiro, story-bord, planilhas e plantas de filme), edição de filmes (uso de cores e sons, uso das câmeras e iluminação, como filmar, realização de diálogos etc.) e pós-edição de filmes. Depois de ter realizado vários cursos naquela cidade ainda realizei um último, sobre metodologia de auto-conhecimento para produção cinematográfica, com a cineasta mexicana Carolina Rivas, que foi de fundamental importância para possibilitar a sistematização de uma metodologia apropriada para organizar e incorporar o conhecimento obtido nos cursos sobre produção cinematográfica no intuito de aplicá-la como proposta didático-metodológica no Curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB.

A experiência foi objeto de comunicação no I Encuentro Internacional de estudios visuales latinoamericanos 2014, organizado pela Universidad Nacional de Hidalgo e realizado em Pachuca, Hidalgo, México, em julho de 2014 sob o título Enseñanza de producción cinematográfica para la realización de trabajos académico-científicos sobre derechos humanos en América Latina.

Além disso, em 2015 a professora recebeu Menção Honrosa na primeira Edição do Prêmio Esdras Borges de Ensino do Direito, sobre qualidade da dinâmica de ensino do Direito, da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, pelo trabalho que desenvolve com o ensino de produção cinematográfica em direitos humanos na Universidade de Brasília –UnB.

Chamo a atenção, entretanto, para a vertente filosófica de conhecer pelo cinema por meio do precioso livro de meu colega de UnB, Julio Cabrera Cine: 100 años de filosofia. Uma introducción a la filosofia a través del análisis de películas (Barcelona: Gedisa Editorial, 1999). Pelo que sei há uma edição brasileira recente desse livro, embora eu não saiba indicar a fonte editorial.

Na obra Cabrera faz uma advertência para a qual sinalizei antes:

Decir que el sentido del mundo debe abrirse para uma racionalidad exclusivamente intelectual, sin ningún tipo de elemento emocional y sensible, es, por lo menos, una tesis metafilosófica que necesita de justificación. Tal vez el sentido del mundo solo sea captable a través de uma combinación – estratégica y amorosa – de sense y sensibility, como diria la profesora Emma Thompson. En este sentido, se habla aqui de una ‘razón logopática’, de uma racionalidad que es lógica y afectiva al mismo tiempo, y que se encontraria presente en la literatura, en la filosofia de los mencionados ‘rebeldes’, y, ciertamente, em el Cine (pág. 9).

Também no ensino do Direito, desde há muito, percebe-se a preocupação didático-pedagógica e também epistemológica, de abrir o conhecimento do jurídico para outros modos de apreensão de seu objeto, em diálogos estético-expressivos mediados por diferentes racionalidades.

Essa preocupação transparece dos esforços indutores que a Comissão de Educação Jurídica, na origem (1991), Comissão de Ciência e Ensino Jurídico, do Conselho Federal da OAB, pro- curou imprimir em seu protagonismo para o aperfeiçoamento dos cursos de Direito, sua atualização curricular e sua avaliação. Em balanço crítico de um de seus mais destacados presidentes, influente no estabelecimento de padrões para a implementação desses objetivos (MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Ensino Jurídico, Literatura e Ética. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2014), com experiência docente enriquecida com o trabalho que o autor desenvolveu, ao longo de seis anos, na presidência da Comissão Nacional de Ensino Jurídico da OAB (pág. 9), constata-se o tempero que a literatura proporciona para a formação jurídica. De fato, ele procura mostrar (pág. 9), como algumas obras essencialmente literárias podem ser úteis no ensino do direito. Ele acrescenta:

À guisa de motivação para as aulas ou, até mesmo, como método destinado a ilustrar o estudo de determinados institutos, o professor de direito pode valer-se, com proveito, da literatura. Isso já não constitui novidade, nas Faculdades de Direito, de tal forma esse enfoque vem sendo difundido em trabalhos teóricos e adotado na prática docente. Livros e revistas especializadas têm contribuído significativamente para despertar o interesse pela literatura, servindo como elementos auxiliares do ensino jurídico. Além do que o gosto literário amplia a formação humanística e esta é indispensável ao profissional do direito. O senso jurídico, que Ferrara dizia ser tão importante para o jurista quanto o ouvido musical para o músico, só pode ser apurado pelas boas leituras e pela experiência da vida. Até mesmo a poesia tem papel de relevo na formação do senso jurídico. Não é por outra razão que Cou- ture salientava que sentença deriva de sentir. O juiz que conhece apenas o direito tende a isolar-se numa torre de marfim. Ele necessita obter isso que as escrituras chamam de sal da terra, como forma de prevenir-se contra as impurezas do espírito humano e os vícios de interpretação que podem causar. Da mesma forma o advogado não deve adstringir-se às leis. Carlos Drummond nos advertia, em belo poema, que as leis não bastam / os lírios não nascem das leis. Daí o lugar de destaque conferido à literatura no ensino jurídico (págs. 9-10).

Em seu instigante livro El aprendizaje del aprendizage. Fruta Prohibida. Una introducción al estúdio del Derecho (Madrid: Editorial Trotta, 1995), Juan Ramón Capella mostra a preocupação de que o estudo do Direito não se torne uma tarefa fatigante, “desligado dos temas que andavam pelas ruas”, para assinalar o desalento, lembra Roberto Lyra Filho, do estudante de direito Castro Alves (Pego o compêndio – inspiração sublime/ P’ra adormecer inquietações tamanhas./ Violei à noite o domicílio – ó crime!/ Onde dormia uma nação de aranhas.) e sugere metodologias alternativas de modo a aprender de material no jurídico: de los relatos cinematográficos, de la pintura, de cursos o conferencias de otras facultades. Sobre todo, de la lectura; y del saber estar en soledad (pág. 97).

Ao final de seu livro cuida de oferecer a título de bibliografia um elenco amplíssimo incluindo discografia e um catálogo de “cines”, registrando, que “no puedes perderte…” (págs. 110- 111). São filmes que envolvem a prática e a performance jurídicas, as dimensões da pedagogia (método e didática) e o próprio conhecimento, inclusive do Direito.

Com esse mesmo intuito vale mencionar os trabalhos de Luis Carlos Cancellier de Olivo – o Reitor martirizado no furor do lawfare que se abateu sobre o país recentemente – e Renato de Oliveira Martinez (http://bit.ly/2Hnergd e http://bit. ly/2HqpKV3 – acesso em 12/01/2016). Vale a pena consultar esses dois registros, para localizar alguns trabalhos que contribuem para o tema e usufruir de um excelente levantamento bi- bliográfico, dentro de um campo de estudo, assinalam os autores, que corresponde a uma área de investigação que compartilha o interesse por um mesmo tema, e que se desenvolve por meio de um conjunto interrelacionado de práticas, técnicas, informações e experiências.

Próximo ao desenho elaborado por Cabrera para a Filosofia, mas com pretensão focalizada em relacionar “filmes para discutir conceitos, teorias e métodos”, localiza-se o livro Direito e Cinema, (Salvador: Edufba, 2004), organizado por Verônica Teixeira Martins Marques, Ilzver de Matos Oliveira e Waldimeiry Corrêa da Silva. Tomo alentado de 543 páginas se presta aos objetivos dos organizadores com o apoio dos seus colaboradores autores e autoras de oferecer à didática do ensino jurídico, a abordagem de relações instigantes entre filmes e conceitos – dos filmes hollywoo- dianos à poesia de metáforas sensíveis – onde o cinema registra a condição de nossa existência com o poder de imagens, sonhos e ideais, de maneira que uma teoria árida ou o caráter de neutralidade dos métodos científicos se tornem acessíveis a partir do poder de imaginação provocado pelo cinema (pág. 10).

Recorto as ricas e plurais contribuições coligidas no livro, com temas que trazem ainda a vinculação em algumas abordagens, também da questão política, por exemplo, a vivida sob a sombra do autoritarismo obscurantista, que resultou em censura, em tortura, em exílio, em assassinato político. No recém- lançado volume, o no 7, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et allli (orgs). Brasília: Centro de Educação a Distância – CEAD/NEP/UnB- MJ/Comissão de Anistia, 2015), inclui um texto do cineasta, expoente do documentarismo brasileiro, meu colega de UnB, Vladimir Carvalho (A Resistência em Brasília – um breve testemunho), exemplar a esse propósito (págs. 69-70):

Neste mesmo ano de 1971, por mais que tentasse evitar, confrontei-me com o esquema de repressão do Estado discricionário: meu primeiro longa-metragem, O País de São Saruê, foi liminarmente proibido pela Censura e mais do que proibido, interditado em todo o território nacional. O veredito dos censores, como está no Diário Oficial da União, incluía uma justificativa afirmando que o documentário, imaginem, ‘feria a dignidade e os interesses nacionais’. Decidi, então, que não iria desistir e inscrevi o filme na competição do Festival de Brasília; para minha surpresa, ele foi selecionado. Entretanto, para purgar os meus pecados, a direção da Fundação Cultural, que tinha como presidente do seu Conselho José Pereira Lira, ex-chefe de polícia no Governo do general Eurico Dutra, foi taxativa, e, dias depois, recusou a decisão da Comissão de Seleção. Ficava o dito por não dito. … apelei e fui sozinho e contrafeito ao velho Pereira Lira, homem tosco, servil aos poderosos, herdeiro dos coronéis do Piancó, na Paraíba. Disse-me, seco como uma múmia, despachando-me: ‘Se esse seu filme fosse boa coisa, não teria sido preso na Censura’. Ainda insisti, indo bater na porta do gabinete de Rogério Nunes, manhoso e sibilino chefe da Censura Federal. E aí foi a vez da mais descarada farsa. Apanhou o meu processo e foi despachar com o general Canepa, o temível chefão da Polícia Federal; duas horas depois, voltou dizendo que o Ministro Alfredo Buzaid estava muito preocupado com o que lera na imprensa e, temendo pelo festival, desaconselhara qualquer liberação. Resumo da ópera: o O País de São Saruê foi substituído por uma xaropada esportiva chamada Brasil Bom de Bola, para adular o ditador Médici, que havia recebido em praça pública os vencedores da Copa de 70, objeto do documentário.

Sugiro a leitura completa do texto de Vladimir Carvalho, conforme a referência indicada, em tudo ilustrativo do quadro hostil que o autoritarismo esboça para escapar ao modo artístico de fazer a leitura simbólica do social, do político e do jurídico. E, no ambiente universitário, também afetado por essas interferências, de que modo o conhecimento crítico, nas suas múltiplas expressões, se preserva gerando formas sutis de resistência. Assim também em relação ao cinema. De fato, conforme ele conclui o seu texto (pág. 71): Foi no clima dessa reconstrução (da Universidade de Brasília) e como pedagogia para a superação do período autoritário, que realizei ‘Barra 68 – Sem perder a ternura’”.

Descubro em algumas dessas referências, para além das dimensões a que já me referi, ainda uma outra influência que talvez possa ser considerada a mais notável difundida no Brasil. Refiro-me a que deu origem, sob a baliza dos dois manifestos “do Surrealismo Jurídico” e da “Ecologia dos Desejos”, ao movimento da Cinesofia, criado por Luís Alberto Warat.

Remeto aqui aos anais da 3ª Semana Nacional de Cinesofia, coordenada pelo grande pensador e que aconteceu na Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, em novembro de 2000 (Cuiabá: Unirondon/Almed, 2000), para indicar a existência de um achado memorial dessa rica experiência pedagógica. Mas, para esclarecê-la trago as palavras do próprio Warat, in La Cinesofia y Su Lado Oscuro. La infinita posibilidad surrealista de pensar com la cinesofia (Territórios Desconhecidos. A Procura Surrealista do Abandono do Sentido e da Reconstrução da Subjetividade (Florianópolis: Fundação Boiteux, vol. I, 2004):

Siempre pense que los sueños libertadores se expresan en un lenguage esencialmente poético. Esa es mi proximidad com el surrealismo. Eso me lleva a pensar em el sueño-poesía como antídoto para una sociedad finisecular que solo conserva el desencanto como valor. Bajo estas condiciones, la poesia reabre la posibilidad de una fuerza creadora, nos devuelve la capacidad mágica de ilusionarmos. La poesia funcionando, em situación de transferência, como disparador.

Lo que finalmente me quedo como saldo: Para la cinesofia, el cine es una experiência poética, ética, política y psicoanaliticamente orientada: uma poesia para descifrar. También es una cartografia de la subjetividad y de las relaciones intersubjetivas em la condición trasmoderna. La Idea de una metafísica constitutiva que enfrente, poéticamente, los abismos de la existência. La cartografia que busca outro niveles de subjetivación. La cartografia que busca a constitución del mundo y sus saberes com la misma disponibilidad que puede tener el analista com su paciente, tan diferente a la postura rígida para com el otro que presenta la academia iluminada (la falsa metafísica de los que sienten la necesidad de ser sábios). Una forma de tirarnos a uma pileta de aguas explosivas, para que nos ayude a viabilizar la construcción del futuro. La fuga hacia los lugares que no hacen sentido, para la composición del nuevo… . (págs. 561-562, assim mesmo, em “portunhol”, no original).

Reafirmo o sentido libertário em Warat porque ele é o autor que mais intensamente interpelou o novo pela imaginação e até pelo sonho e ofereceu condições para construir mediações acessíveis para o futuro. E porque, entre essas mediações, sugeriu estratégias dialógicas, entre elas o cinema, aptas, lembrei em um trabalho meu (Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2011), a constituir um trabalho de reconstrução simbólica, imaginária e sensível, com o outro do conflito e de produção com o outro, das diferenças que permitam superar as divergências e formar identidades culturais (pág. 60).

Conforme o próprio Warat nos legou, tal como ficou registrado em sua entrevista concedida a Marta Gama para o Observatório da Constituição e da Democracia (C & D), no 8, outubro de 2006, UnB/FD, Brasília, págs. 12-13 (aliás, a última entrevista, antes de aposentar-se na UnB instalar-se na UFRJ, até o momento de regressar a Buenos Aires e logo falecer):

A arte me mostra que é o melhor caminho para a inclusão social dos excluídos. A recuperação da autonomia, a descoberta de um sentido para a vida é sempre através da arte, porque não pode haver outro modo de fazê-lo que através da poesia. Evidentemente, uma nova concepção do Direito deve ser transdisciplinar, porém de uma transdisciplinariedade que seja mais que uma simples interseção, que habilidades oriundas de diferentes lugares de saber. Precisamos falar de um lugar ‘trans’ que agregue uma nova dimensão no espaço pedagógico: o espaço da sensibilidade e das artes. Assim, a arte nos abre uma infinidade de mundos e ajuda a encontrarmos nosso sentido de vida. Nosso lugar na vida como sentido. A arte nos ajuda a construir um caminho pessoal e único. Creio que a arte também tem um papel muito importante no processo de construção da emancipação individual e coletiva. Na verdade, penso que a única forma de fazermos uma revolução existencial é através da arte. A única forma de fazermos as revoluções moleculares no século XXI.

Detive-me um pouco mais no esquadrinhamento do pensar waratiano porque, de alguma forma encontro a sua influência numa das mais fecundas abordagens atuais sobre as intersecções epistemológicas, pedagógicas e políticas que se desenvolvem, institucionalmente, no Brasil. Aliás, retiro desse texto, integralmente, uma nota de filiação, que transcrevo e que me confirma a localização dessa identidade. Transcrevo a nota:

Possivelmente, a pesquisa mais detalhada realizada no Brasil sobre as diversas intersecções e possibilidades de abordagens investigativas en- tre Direito e Cinema seja a desenvolvida pelo ‘Grupo de Pesquisa em Direito e Cinema’, que atualmente integra o Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ – LADIH. Nesse sentido, ver: MAGALHÃES, J. N.; PIRES, N.; MENDES, G. et al (org.). Construindo memória: seminários direito e cinema. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, 2009. E também: DE MATOS, Marcus V. A. B.. “Direito e cinema: os limites da técnica e da estética nas teorias jurídicas contemporâneas”. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 60, p. 231 a 267, jan./jun. 2012.

Trata-se, salienta o autor, – Warat certamente é uma referência para a coordenação desse projeto, referindo-me a Juliana N. Magalhães – de percorrer o caminho no qual, a senda mais promissora continua a ser a que permite “falar da relação entre “cinema e direito” – num modo que – requer, de antemão, rever a “concepção tradicional, normativista de direito”, e abrir espaço para outras formas simbólicas de manifestação do Direito”.

No trabalho de Marta Gama, Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, editado pela EdUECE, ela parte de uma pergunta visceral: O que pode a arte na formação do jurista? Esta pergunta que ela responde neste livro serviu de guião na sua trajetória de pesquisadora e foi diligentemente trabalhada em sua tese de doutorado “PENSAR É SEGUIR A LINHA DE FUGA DO VOO DA BRUXA” Pesquisa sociopoética com estudantes de Direito sobre a arte na formação do jurista, defendida na Faculdade de Direito da UnB, em 2013, de onde a Autora extrai a matéria da obra.

Nas palavras da própria Autora, tudo começou com a busca pelos infinitos de possibilidades que a arte pode produzir no ensino jurídico, suas potencialidades e seus limites, e com o propósito de investigar tais alternativas. Para isso, empiricamente, antes, foi realizado o Percurso em Direito e Arte em uma abordagem Socio-poética, curso-pesquisa com sete estudantes de Direito – quatro mulheres e três homens –, dos quais seis eram alunos na Universidade de Brasília e um da Universidade Católica de Brasília, a partir de um tema-gerador A arte na formação do jurista.

Do que se trata a Sociopoética? Essa é a questão teórica que dá lastro à pesquisa tal como ela a desenvolve no livro, aprofundando um enquadramento que já havia designado, previamente, como se vê do artigo que assina comigo por ter sido seu orientador A experiência artística e a criação na formação do jurista. Uma pesquisa sociopoética com jovens estudantes de Di- reito do Distrito Federal, publicado em Linguagens, Educação e Sociedade: Revista de Pós-Graduação em Educação da UFPI/ Universidade Federal do Piauí/Centro de Ciências da Educação e Juventude-Teresina: EDUFPU, 2013-353p. Edição Especial Dossiê Educação e Juventudes. ISSN 1518-0743, Ano 18.

No artigo foram apresentados os resultados parciais da investigação de doutorado. Nele já se destaca a abordagem sociopoética de pesquisa, que tem a experiência artística como dispositivo disruptor, um dos seus princípios, e foi o caminho metodológico empregado no curso-pesquisa, proporcionando aos estudantes Formação em Direito e Arte e produção dos dados. Também já se confirma, com a segurança do percurso realizado, que a experiência artística, pela violência com que afeta as subjetividades, deslocando-as da sua zona de acomodação, promove o ato de pensar, que, no dizer de Deleuze e Guattari, fontes da retaguarda teórica do trabalho, nada tem de ordinário, pois somente ocorre diante da brutalidade, da violência, que nos retira da opinião, da representação, da recognição. É no encontro com o caos, a partir dessa violência, que somos provocados a pensar e a criar. Nesse sentido, a experiência artística revela-se um potente dispositivo na formação do jurista, porque, promovendo o ato de pensar e a ruptura com a recognição, oportuniza a criação.

As análises dos dados levaram a duas linhas ou dimensões do pensamento do grupo-pesquisador, que no livro, são examinadas em pormenor. A primeira: o ensino jurídico, linha que desvela o quanto do passado persiste no presente do ensino jurídico; o quanto há linhas de segmentarização constantemente perturbadas, inquietadas, assombradas por práticas e ideias, linhas de fuga, que operam transformações da paisagem. O que demonstra que o ensino jurídico é um terreno conflituoso, um campo de lutas onde práticas arraigadas convivem com ideias e ações educativas transformadoras.

A segunda linha: Arte na formação do jurista demonstra que a experiência artística pela violência com que opera, retira o pensamento da sua imobilidade, promovendo o ato de pensar. Porque pensar, diz Marta – é sempre seguir a linha de fuga do voo da bruxa, já que o pensamento não pensa sozinho, mas apenas diante de algo que o força a pensar. Mas a questão funda- mental do pensamento é a criação. Pois não existe pensamento sem criação, porque pensar é inventar, pensar é fazer o novo. Assim, a experiência artística na formação do jurista é a possibilidade de reinventar conceitos jurídicos, produzir novas possibilidade para o Direito.

Por isso que, os dados produzidos na pesquisa, movida por conceitos peculiares, singulares, constituídos numa voragem criadora do imaginário interpelante, demonstram o turbilhão de ideias e de conceitos desterritorializados e heterogêneos, marca- dos pelas multifaces presentes no entrelugar entre o Direito e a Arte.

Marta se mantem íntegra e fiel neste percurso, na busca de novos caminhos para mapear esse entrelugar entre Direito e Arte. Com Luis Alberto Warat, a voz silente (expressão muito usada por Warat) do discurso de Marta, para ela tudo converge para a possibilidade da instituição do novo. Mais ainda, no campo da pedagogia e do ensino do Direito, seu espaço de movimento, porque é do que se trata, ela afirma, é propor uma revolução da forma de ensino do Direito, através da arte, abrir caminho para uma macro revolução, já que a revolução poética, dos sentidos, de libertação dos desejos, aponta para a própria revolução do homem e do mundo. Da palavra libertada, da imaginação descolonizada, pela magia dos sonhos, pelo ato poético de viver, emerge irresistivelmente uma nova forma de existir, novas maneiras de significar a vida, as relações humanas, uma nova significação imaginária, que rompendo, enfim, com os grilhões de uma racionalidade totalizante (cientificidade moderna, positiva, causal) seja capaz de construir a autonomia individual e coletiva (GAMA, Marta. Surrealismo Jurídico, Arte e Direito: Novos Caminhos. Brasília: Fa- culdade de Direito da UnB. Observatório da Constituição e da Democracia, n. 8, outubro de 2006, p. 06-07).

Na Coluna Lido para Você que mantenho no jornal Estado de Direito, publiquei a algum tempo uma recensão do livro infantil A Rua de Todo Mundo. Carolina Nogueira. Brasília: Longe/ Edição da Autora. 2 edição, 2015. ISBN 978-85-916451-0-). Neste livrinho a autora fala e ilustra uma obra, diz ela que nasceu da generosa colaboração dos meus amigos do mundo todo, numa história da maior rua do mundo, a mais legal de todas. A rua de todo mundo. Uma rua na qual os vizinhos são ao mesmo tempo diferentes e bem parecidos. Eu cheguei a esses livros “infantis” de Carolina Nogueira, da forma como em geral se chega a essas histórias escritas para crianças, mas que nos alcançam de modo inesperado.

Curiosamente, porém, meu primeiro contato, aliás, não foi com a escritora mas com a produtora de um instigante projeto Feirinha do Quadrado (https://www.feirinhadoquadrado.com. br/) que me convidou para participar de uma live abrindo a sessão de debates do projeto, para discutir o tema Quem tem direito a Brasília? Tal como se pode ver na página, a descrição da proposta estava assim orientada:

No primeiro debate, a Feirinha do Quadrado 2020 tem a alegria de receber o ex-reitor da UnB José Geraldo de Sousa Júnior, ideólogo do Direito Achado na Rua. Ele discute conosco e com Luísa Porfírio e Guilherme Black, da ONG No Setor, como o direito à moradia, à livre circulação e ao lazer é distribuído na cidade de Brasília. Pessoas que moram na rua, vendedores ambulantes, pessoas que não moram no Plano Piloto: quem tem direito a Brasília? Em que contextos os espaços urbanos são apropriados de maneira real, para além de eventos temporários?

A minha primeira intervenção foi exatamente, a pedido da moderadora, esclarecer o sentido e o alcance da expressão O Direito Achado na Rua. Falei das condições políticas e teóricas que abrem o tema do Direito às teorias críticas que o articulam ao social e não apenas às normas. Sustentando que os direitos são relações, não são quantidades. São as dimensões do humano que se realiza na história, no movimento das subjetividades que se emancipam. E não artefatos que se depositam em prateleiras legislativas e que se empoeiram e se fadigam em face das transformações que operam na sociedade.

Por isso a metáfora da rua, para designar o espaço público, o lugar popular do poder como declama Castro Alves (O Povo ao Poder: pois quereis a praça?/ Desgraçada a população/ Só tem a rua de seu…); ou Cassiano Ricardo (Sala de Espera: Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de “lá fora”./ Em seu oceano que é ter bocas e pés/ para exigir e para caminhar./A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./ Rua do homem como deve ser:/ transeunte, republicano, universal./ Onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da procissão, do comício,/ do desastre, do enterro./ Rua da reivindicação social, onde mora/ o Acontecimento…); ou em Marshal Berman (Tudo que é Sólido Desmancha no Ar), aludindo à rua como o espaço no qual, em seus encontros e desencontros, ao reivindicar liberdade, justiça, cidadania e direitos, a multidão se transforma em povo. Ou em Marx, em quadra que Roberto Lyra Filho traduziu e tomou como metáfora para simbolizar a sua concepção de Di- reito: Kant e Ficht buscavam o país distante/ pelo gosto de andar no mundo da lua/ eu por mim tento ver, sem viés deformante/ o que pude encontrar bem no meio da rua.

Por isso a imediata identificação desse tema comum, no meu projeto de pesquisa – O Direito Achado na Rua – e no livrinho de Carolina Nogueira – A Rua de Todo Mundo – Um lugar onde tão lindas quanto as diferenças que existem entre as culturas são as semelhanças que aproximam todas as crianças do mundo. Assim, transformado em mote, fio condutor, para mostrar as disputas interpretativas e de apropriação da cidade, enquanto não formos capazes de vivenciar e compartilhar a cidade de modo solidário, ao invés de disputar projetos de cidade, conforme acentuaram meus colegas de live.

Observe-se a atualidade do discurso higienista, refeita na intenção de “revitalização do Setor Comercial Sul” recuperado para a especulação imobiliária sem nenhuma política social de compensação para os seus usuários, apesar de todas as formas de inserção social nas políticas públicas de direito urbanístico e mais ainda de direito à cidade. O discurso do Governo distrital, e as práticas repressivas, violadoras de direitos e destituintes do uso livre da cidade, permanece o mesmo que o proferido pelo antigo prefeito de São Paulo, depois Presidente da República Washington Luís, sobre o projeto de recuperação da Várzea do Carmo (durante o seu mandato municipal entre 1914 e 1919), esvaziado de sua apropriação de uso para integrá-lo ao âmbito capitalista das trocas e da mercadorização, o que ainda se vê, na adiantada capital do estado, a separar brutalmente do centro comercial da cidade os seus populosos bairros industriais, é uma vasta superfície chagosa, mal cicatrizada em alguns pontos, e, ainda escalavrada, feia e suja, repugnante e perigosa, em quase toda a sua extensão. (…):

É ai que, protegida pelas depressões do terreno, pelas voltas e ban- quetes do Tamanduateí, pelas arcadas das pontes, pela vegetação das moitas, pela ausência de iluminação, se reúne e dorme e se encachoa, à noite, a vasa da cidade, em uma promiscuidade nojosa, composta de negros vagabundos, de negras edemaciadas pela embriaguez habitual, de uma mestiçagem viciosa, de restos inomináveis e vencidos de todas as nacionalidades, em todas as idades, todos perigosos. (…)

Denunciado o mal e indicado o remédio, não há lugar para hesitações porque a isso se opõem a beleza, o asseio, a higiene, a moral, a segurança, enfim, a civilização e o espírito de iniciativa de São Paulo.

Os fundamentos que orientam a minha posição jurídica no tocante às questões que o debate suscita estão no nono volume de O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico (http://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17), que vem ampliar a série e é apresentado em um momento político que as liberdades democráticas, núcleo central do direito à cidade, encontram-se fortemente ameaçadas. Esperamos, assim, que as palavras aqui escritas ganhem vida e sirvam como repertórios de legitimação para as práticas insurgentes de resistência e de reinvenção das formas de sociabilidade democratizantes e libertárias em que nossas trajetórias pessoais e coletivas se inserem (https://correiodolivrodaunb.wordpress.com/2020/11/09/ introduçao-critica-ao-direito-urbanistico/).

Ao fim e ao cabo, procurei, como se pode ver em minhas locuções na live, recuperar o sentido de polis que o social reivindica para o projeto de Brasília, e que orienta a ação e o discurso sobre a cidade, na disputa entre consumo e cidadania, e que precisa ir além da civitas e da urbs, a cidade bela e funcional, pensada no projeto e usufruída por sua elite descendente dos pioneiros e com sensível tensão com os descendentes dos candangos, e inserir na interpretação da cidade o lugar que só a história de protagonismos pode inscrever.

Assim, recuperei a noção de cidade educadora para pensar respostas a essas tensões e o fiz resgatando texto de coluna que mantive na Revista do Sindjus DF – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF (Ano XVII, no 59, junho/julho de 2009, p. 5). Com efeito, em 1990, em Barcelona, na Espanha, por iniciativa da Associação Internacional de Cidades Educadoras, realizou-se o 1º Congresso Internacional de Cidades Educadoras. Ao final desse Congresso foi elaborada uma Carta das Cidades Educadoras, chamada Declaração de Barcelona, contendo definições e princípios pelos quais se definem compromissos que levam a orientar os impulsos educativos da cidade.

Uma cidade pode ser considerada educadora quando nela, além dos vários modos de ocupação de espaços, nos quais se realizam múltiplas interações e experiências do conviver, são disponibilizadas incontáveis possibilidades educacionais, contendo em si elementos importantes para a formação integral de seus habitantes.

A cidade contém, de fato, como assinala a Carta de Barcelona, um amplo leque de iniciativas educadoras, de origem, intenções e responsabilidades diversas. Engloba instituições formais, intervenções não formais com objetivos pedagógicos preestabelecidos, assim como propostas ou vivências que surgem de forma contingente mas que favorecem a disposição para o aprendizado permanente de novas linguagens e que oferecem oportunidades para o conhecimento do mundo, o enriquecimento individual e o seu compartilhamento de forma solidária.

No Brasil, já são oito os municípios que assinaram o termo de compromisso da Carta de Barcelona, entre eles São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. São cidades que podem, assim, trocar experiências bem-sucedidas segundo esses valores e que passam a desenvolver uma identidade constituída por investimentos culturais para a formação das pessoas que nela convivem. Elas procuram, enquanto cidades educadoras que pretendem ser, converter seu espaço urbano em “escola” e, na intencionalidade de suas atribuições, se oferecer como mediação para o desenvolvimento pleno de seus habitantes, contribuindo para que eles se façam sujeitos e cidadãos.

Com efeito, ainda conforme a Carta de Barcelona, a cidade só será educadora quando reconhecer, exercitar e desenvolver, além de suas funções tradicionais (econômica, social, política e de prestação de serviço), uma função educadora cujo objetivo é a formação, pr moção e desenvolvimento de todos os seus habitantes.

Normalmente são identificados atributos para designar uma cidade educadora, a partir da constatação de que ela tem um governo eleito democraticamente e seus dirigentes se empenham em incentivar projetos de educação para a cidadania. Mas a análise histórica e social de qualquer cidade facilmente leva a identificar ações organizadas de movimentos sociais ou de comunidades de vizinhança que representam inúmeras iniciativas e experiências carregadas de sentido educador, por se caracteriza- rem como processos qualitativos de novas sociabilidades.

O notável nesses processos é a construção de uma consciência social mais elevada. Aí reside o fator educador por excelência, na medida em que as pessoas que dele participam acabam conhecendo melhor as situações que fundamentam as decisões relativas à sua cidade e vivenciam de forma efetiva a experiência democrática.

É possível pesquisar uma cartografia dessas práticas a partir de experiências apresentadas em congressos (www.edcities.bcn. es) ou em coletâneas que as registram, como a coleção Cidades Educadoras (Editora Cortez/Instituto Paulo Freire/Cidades Educadoras América Latina) disponível nos sites www.paulofreire. org e www.cortezeditora.com.br.

Elas são muitas e vão desde as práticas de orçamento participativo às de educação para a democracia, direitos humanos e cultura da paz. O que revelam de comum é o efeito irradiador, intercultural e mobilizador das redes e das instituições que se articulam nessa lógica de inclusão e de solidariedade, revelando o caráter aberto e irradiante da proposta de cidade educadora.

Abordo todas essas questões propostas no Painel, embalado também pela leitura de uma dissertação que orientei no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB, com o título imaginativamente interpelante de Oralituras Munduruku;

As Histórias Contadas e a Justiça Cognitiva. O estudo tem como ponto de partida as mensagens coletadas nos livros de Daniel Munduruku, autor de literatura indígena, em geral escritas para o imaginário infantil – As Serpentes que Roubaram a Noite e Outros Mitos; Meu Avô Apolinário: Um Mergulho no Rio da (Minha) Memória; Todas as Coisas São Pequenas, Memória de Índio – Uma Quase Autobiografia – sob a forma de transmissão de conhecimentos pelos guardiões da memória aos mais jovens, diz Catherine Fonseca Coutinho, proponente da pesquisa. Com certeza essa leitura veio me empurrando para o encontro com a literatura infantil de Carolina Nogueira, ela também instigando a compreender que todas as coisas têm um ciclo; criar, cultivar, ajudar a dar frutos, deixar ir: uma planta, uma ideia, um trabalho, um sonho, um amor, um livro, a vida.

Creio que sua expectativa se refere aos desafios e às tarefas atuais que se colocam para esse modo de conhecer e de realizar o Direito, tal como procurei acentuar em livro (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (coord.). O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015). Cuida-se, nessa obra que conta com um coletivo de pesquisadores do Grupo de Pesquisa com a mesma denominação, de pôr em relevo, pensamento e ação de operadores que sabem exercitar a compreensão plena do ato de realizar o Direito, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”. É aí que reside o protagonismo dos provedores de uma justiça poética, capazes de apreender o Direito a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”, como já se disse certa feita em homenagem a essa estirpe de juristas.

“Que a marreta do padre Lancelotti, para mim a mais contundente declaração de direitos e de manifestação por Justiça, esmague as serpentes e os sistemas antipovo enquanto alimenta pobres e abriga em sua igreja povo de rua”. Não é simples, nem fácil, comprometer-se com esses direitos. Lembra Eduardo Galeano: a justiça (e muitos governos), como as serpentes, só morde os descalços (https://www.brasilpopular.com/ossos-de- boi-arroz-e-feijao-quebrados-e-pe-de-galinha-fome-no-brasil/).

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua